Para ler ouvindo: Father Figure do George Michael
Na psicologia, a infância é um tema fundamental para entender a vida adulta de um indivíduo. Dependendo da abordagem terapêutica, como a psicanálise freudiana, o psicólogo pode se aprofundar bastante nesse período da vida. Isso porque grande parte do que somos hoje é influenciada por nossas experiências infantis. Nossos medos, nossa percepção de mundo e a forma como nos relacionamos com os outros são, em grande parte, moldados nessa fase.
Hoje, pegando uma licença poética da tecnologia, posso fazer uma analogia sobre isso. Imagine que seu corpo é um celular e sua mente, um sistema operacional (como Android ou iOS). Quando nascemos, já temos alguns aplicativos pré-instalados, herdados da nossa mãe e do nosso DNA. Conforme crescemos e adquirimos consciência e independência, vamos instalando novos aplicativos conforme aprendemos com a vida. Alguns desses "aplicativos" podem ser positivos, como empatia, aprendizado e habilidades sociais, enquanto outros podem ser limitantes, como preconceitos ou inseguranças. Tudo depende das experiências e influências que recebemos ao longo do tempo.
O trailer do filme Babygirl pode dar a impressão de que se trata apenas de um filme de putaria com bastante cenas eróticas, mas não se engane. Embora tenha várias cenas para maiores de 18 anos, o filme aborda questões mais profundas.
A partir de agora, vai ter spoiler! =)
No começo, somos apresentados à personagem Romy (Nicole Kidman), uma CEO muito bem-sucedida de uma empresa de entregas robotizadas, mãe de duas meninas e uma esposa dedicada. Ela representa a típica família onde tudo parece estar indo muito bem, obrigada. Mas, já nos primeiros minutos, alguns detalhes jogados na tela sugerem que o filme não é tão leve quanto parece.
O início foca na vida familiar de Romy, mas logo em seguida há uma cena que, para mim, foi muito importante e impactante. Vemos a personagem caminhando pelas ruas de Nova York quando é quase atacada por um cachorro feroz. Ela não se machuca porque um homem desconhecido consegue acalmar o animal e evitar o ataque.
Só depois, ao mergulhar mais na história e nos personagens, consegui entender a importância dessa cena. Uma das possíveis leituras é que, por mais que Romy tente transmitir uma imagem de controle e força, no fundo, ela se sente desprotegida e fragilizada. Outra interpretação é que, por mais que ela pareça estar no poder e não ser contrariada, há nela uma necessidade quase instintiva de ser “atacada”.
O homem misterioso que a salva, depois é apresentado como o novo estagiário da empresa onde ela é dona. A diferença de idade entre os dois é grande, e isso é ressaltado várias vezes no filme — não de forma leviana, mas para enfatizar o nível de troca que se estabelece no relacionamento que eles começam a construir.
Samuel (Harris Dickinson), o novo estagiário, não tem aquele respeito tradicional de funcionário com chefe, aquela coisa de sempre acatar ordens sem questionar. Desde as primeiras interações, fica claro que ele gosta de provocar Romy. Em determinado momento, durante uma conversa entre os dois, ele diz que ela é uma pessoa que gosta de receber ordens. E pronto, ali se estabelece uma dinâmica entre eles.
Conforme o filme avança, percebemos que Romy possivelmente teve uma infância problemática. Não fica muito claro se ela sofreu algum tipo de abuso, mas algumas cenas sugerem que sua infância foi diferente do padrão. Talvez isso justifique um pouco a forma como ela se relaciona com Samuel — essa mistura de submissão e necessidade de apoio emocional.
Samuel, por outro lado, tem sua infância pouco explorada no filme. O que sabemos é que ele foi criado pela mãe, uma professora, enquanto o pai, um segurança de pessoas importantes como políticos, esteve ausente.
Analisando as informações apresentadas, fica claro que a infância de Romy a transformou em alguém que precisa de direção e suporte, mesmo que ela não demonstre isso abertamente. Já Samuel parece ser uma pessoa sensível ao outro, capaz de entender o que Romy precisa. Talvez, por ter sido criado apenas pela mãe e ter um pai ausente, ele tenha desenvolvido essa sensibilidade para compreender melhor os sentimentos dos outros.
E é isso. Essa é a base do filme. Romy precisa de alguém que a ajude a se aprofundar em suas emoções, tanto boas quanto ruins, e Samuel é o cara que a conduz nesse mergulho, fazendo ela revisitar aspectos da infância dela que pareciam estar adormecidos.
Tudo é feito de forma bastante erotizada, com muitas cenas de sexo e situações em que ele exerce poder sobre ela. Mas, se você prestar atenção, verá que tudo acontece de maneira consensual e, em muitos momentos, até carinhosa.
Não é um filme raso. É um filme sobre fragilidade, sobre cuidado, sobre entregar ao outro o que ele precisa. E entendemos isso numa cena muito bem construída em que eles estão deitados na cama, conversando, e Samuel pergunta para Romy se ela acha que ele é uma pessoa má.
Ela responde que não, mas que, na verdade, o considera adorável, que ele sente e entende o que as pessoas querem e precisam. Essa é uma informação importante, pois é o que dá a direção do relacionamento que eles estão construindo.
Pouco depois dessa cena, eles se encontram em uma rave. As imagens mostram um ambiente quente, barulhento e sensual. Quando ficam a sós, Romy quer saber se Samuel faz as mesmas coisas com a namorada que faz com ela. Ele responde:
— Ela não é assim, Romy. É por isso que gosto dela de uma maneira diferente. É por isso que gosto de mim de uma forma diferente, com ela.
Para mim, essa é a parte que dá para entender todo filme. Com Romy, eles vivem um jogo onde ela entrega o poder a ele. E ele assume esse papel, criando situações onde a carga sexual funciona como uma válvula de escape para ela.
Já com a namorada, fica claro que esse jogo não existe. A relação entre eles parece mais leve, sem tantas regras ou dinâmicas de poder. Talvez, e esse é um grande talvez, a namorada não carregue a mesma carga emocional que Romy traz da infância, o que permite uma troca mais leve entre eles.
No fim, somos fruto da nossa infância, mas, conforme crescemos e nos relacionamos com outras pessoas, também nos tornamos fruto dessas conexões. Tudo depende de com quem estamos e de como essas relações nos fazem sentir. Babygirl nos mostra isso de uma forma ora profunda, ora erotizada, mas sempre com muita sensibilidade.
Estamos falando de um filme interessante, que pode agradar diferentes tipos de público. Se você quer apenas curtir cenas sensuais e um protagonista muito gostoso sem camisa, Babygirl entrega isso. Mas, se prefere mergulhar nas camadas mais profundas das relações humanas, também vai encontrar um material para refletir. No fim, o filme é sobre desejo, controle e a complexidade dos sentimentos.
Então eu fico por aqui!
Até a próxima!
Faixa bônus:
Não sei se ficou claro, mas a Romy estava tendo um caso extraconjugal com o Samuel. #ficaadica
Atenção para trilha sonora, que é muito boa, mas que merece atenção especial para as letras das músicas Never Tear Us Apart do INXS e Father Figure do George Michael, que não estão no filme por acaso.
Nicole Kidman apenas absurdamente maravilhosa.
Harris Dickinson é prova de quando Deus desenhou esse cara, ele estava namorando.