Oi, L.
Talvez eu comece uma nova forma de comunicação com você por aqui. Gosto de pensar nas cartas que Nise da Silveira e Jung devem ter trocado. E talvez eu esteja pegando essa licença poética (uma grande licença, claro!) para fazer o mesmo com você.
Nossa última conversa começou comigo com um coração muito agitado, achando que estava enlouquecendo de vez (quem não está?). E terminou com risadas, e eu dizendo que você estava quase se tornando um coach.
Você me disse coisas muito bonitas, que me trouxeram um pouco de calma e clareza. Em determinado momento, você disse: "Não transforme sua melancolia numa patologia." E falamos também sobre como é solitário sentir em um mundo que nos incentiva constantemente a permanecermos adormecidos.
Tenho pensado muito na nossa conversa. Parece que você foi me mostrando portas que eu nem sabia que estavam ali. Agora, só me resta coragem para abri-las.
Estou tentando fazer novos amigos. Já fiz esse movimento aos 30 anos, quando tive que recomeçar tudo na vida, mas confesso que construir uma nova rede de amizades agora, aos 40, tem sido bem mais desafiador e cansativo.
Desta vez, estou focada em encontrar amigos que pedalam, pois, desde 2015, costumo pedalar sozinha. Agora, queria adicionar mais pessoas nisso. Talvez seja a velhice chegando? Mas não é justamente a velhice que nos faz querer ficar mais sozinhos? Será que estou no movimento contrário (de novo)? Muitas questões, L.
Mas agora tenho feito alguns passeios por São Paulo com grupos diferentes que encontro na internet. Já participei de alguns e percebi que cada grupo tem uma personalidade — não no sentido de uma pessoa famosa, mas sim no comportamento geral do grupo. Com isso, há grupos mais sérios, grupos que passam a ideia de serem despojados, mas que, no fundo, são bastante regrados, e assim por diante. E eu gosto de ficar ali, no cantinho, meio isolada, observando qual personalidade do grupo vai se desenrolar para mim.
É claro que, de todos os grupos de que participei até agora, fui me identificar com um em que as pessoas eram bem diferentes umas das outras e não tinham nenhum apego a regras. Certamente Freud deve explicar essa minha tendência de sempre querer me juntar com o diferente.
E percebi agora que fico com uma certa euforia quando conheço pessoas novas que podem se tornar, possivelmente, novas amizades. Tudo é relativamente leve, nada é aprofundado, e a preocupação é apenas ser legal o suficiente para a amizade continuar.
Com isso, minha próxima leitura será Como Fazer Amigos & Influenciar Pessoas. (Contém ironia… ou não.)
Falando em grupos de pedal, te contei da minha bicicleta nova, mas não deu para falar muito, pois nosso tempo já estava mais do que estourado. Agora, lembrei que te contei sobre a bicicleta no momento em que nossa conversa estava mais leve e feliz, pois essa história não caberia no começo da nossa ligação, quando minhas falas estavam mais pesadas e tristes.
E é isso: a bicicleta me deixa mais leve e feliz. Faz com que eu tenha outro tipo de relação comigo mesma e com o mundo ao meu redor. Mas, ao escrever isso para você, me veio outra percepção. Se me permite, vou alongar um pouco mais esta carta para explicar.
Em 2011, eu estava começando a faculdade de Comunicação Social. Antes disso, já havia se passado quase uma década em que eu tinha muita dificuldade de sair de casa. "Muita dificuldade" é até um termo leve para descrever a sensação de pânico horroroso que eu sentia em alguns momentos só de pensar em sair. Mas, em 2011, também herdei um carro do meu irmão mais velho, um Uno 1996. Como a faculdade era à noite, meu irmão me repassou esse carro — junto com um amontoado de dívidas no documento.
Eu me agarrei a esse carro como a Rose se agarrou à porta de madeira em Titanic. Era minha saída de um Titanic (eu) que estava afundando. Uma analogia bonita, vai. Agora gostei de me imaginar entre 2001 e 2010 como um Titanic afundando. Mais engraçado ainda é que Titanic foi um dos meus filmes favoritos por muito tempo.
Então, esse carro azul-escuro, que pulava muito e estava irregular, era meu ticket de saída de tudo aquilo. Ele se tornou (não sei bem o termo, talvez) um amuleto para que eu conseguisse sair de casa. Se eu estivesse com o carro, conseguia silenciar o pânico e sair. Ele me dava a segurança necessária para ir e voltar da faculdade. E, claro, eu morria de medo de perdê-lo. Por isso, era obcecada com a segurança dele, estacionando apenas em locais seguros, mesmo que isso me custasse muito mais dinheiro do que eu podia pagar.
Hoje, percebo que faço o mesmo com a bicicleta. Só consigo deixá-la em lugares que considero relativamente seguros. E só agora, escrevendo isso, entendi o porquê. O medo de sair de casa está bem controlado, mas, às vezes, ainda sinto um certo receio em alguns trajetos novos ou desconhecidos quando estou sozinha. A bicicleta se tornou uma aliada em me dar segurança nessas partes. E, com isso, não me sinto sozinha quando estou com ela. Mais do que isso, a bicicleta me faz querer avançar cada vez mais.
E achei bonito perceber que tudo o que escrevi sobre o carro e a bicicleta fala sobre movimento. O movimento da vida. E talvez a bicicleta, agora, venha me lembrar não apenas do movimento, mas também do equilíbrio.
E tudo isso me lembrou do filme Medianeras:
"Medianeras" (2011) é um filme argentino dirigido por Gustavo Taretto. A história acompanha Martín e Mariana, dois jovens solitários que vivem em prédios vizinhos em Buenos Aires, mas nunca se encontram. Ambos enfrentam crises emocionais e dificuldades para se conectar em uma cidade cada vez mais caótica e digitalizada. A narrativa explora a solidão urbana, a arquitetura como metáfora das relações humanas e a busca por conexão em um mundo fragmentado.
É um filme muito sensível, que trata de questões profundas sobre solidão, depressão e crises de pânico. Um dos personagens principais é o Martín, que está num processo de retomada para conseguir sair novamente pela cidade. Em uma cena, ele explica que carrega uma mochila com vários itens que lhe trazem segurança para essas saídas. Ele também menciona que leva consigo uma câmera fotográfica, pois fotografar o caminho faz com que ele redescubra a cidade em que vive.
É claro que tudo isso é mais profundo do que contei aqui. Então, recomendo que você assista ao filme, pois, entre Titanic e Medianeras, o segundo certamente combina mais com você.
Agora, pensando aqui, esses objetos de segurança que criamos em situações de pânico têm algum termo técnico na psicologia. Algum dia, você me explica qual é.
Mas, por ora, fique com a cena de Martín arrumando sua mochila para sair de casa.
E escrevendo tudo isso e fazendo essa conexão, percebi que minha bicicleta se aproxima bastante dessa ideia de segurança — assim como a mochila de Martín.
E achei bem poético também a sinopse do filme que peguei para te contextualizar conter a seguinte frase:
"A narrativa explora a solidão urbana, a arquitetura como metáfora das relações humanas e a busca por conexão em um mundo fragmentado."
Talvez seja esse o meu momento: estou vivendo dentro de uma solidão urbana, em busca de conexões, dentro de um mundo fragmentado.
Vixi!
Mas, além de tudo isso, confesso que ando bastante perdida e melancólica, L. Daqui para começar a distribuir na Avenida Paulista, poemas escritos de forma extremamente depressiva sobre o cotidiano, falta pouco.
Mas, não se preocupe! Se eu fizer isso, envio um dos poemas para você!
Na próxima carta, eu conto que voltei para Ilhabela, como você havia sugerido. E levei a magrelinha junto! Minha primeira viagem com a bicicleta. Ahhh! =)
Minha ilha ensolarada continua lá. E queria narrar essa aventura com empolgação, mas a verdade é que deu tudo errado (e o errado aqui não teve nada a ver com a bike). O motivo dessa viagem não ter dado certo, é que fui acompanhada para minha ilha.
E aprendi, da forma mais dolorida, que voltar para mim mesma é sempre um retorno solitário.
Com isso, acho que estou numa jornada solo, L. Mas isso é assunto para outro momento.
Por enquanto, fico por aqui.
E, por favor, não vire coach. Não combina com você. :p
Um abraço,
G.
Amei o texto. ❤️
Preciso urgente criar uma mochila de segurança dessa...
Excelente texto, como sempre.